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Direitos sobre a Terra em Moçambique

Direitos sobre a Terra em Moçambique 

1. GENERALIDADES     

A actual constituição da República de Moçambique estabelece expressamente que “a terra é propriedade do Estado e (...) não deve ser vendida, ou por qualquer forma alienada, nem hipotecada ou penhorada”[1] tendo os particulares, como meio universal de criação de riqueza e do bem-estar social, o direito de uso e aproveitamento da terra.

Nestes termos, no ordenamento jurídico moçambicano, tem-se, por um lado, o direito de propriedade do Estado sobre a terra e, por outro, o direito de uso e aproveitamento da terra concedido aos particulares, como principais beneficiários e utilizadores da terra. São, pois, estes, os principais direitos que incidem sobre a terra e à volta dos quais são estruturadas as normas que dizem respeito ao acesso à terra em Moçambique.

Antes de se proceder à análise de cada um destes direitos, para um melhor enquadramento, importa fazer uma referência sobre o quadro legal no qual se estruturam os direitos sobre a terra em Moçambique.

No período anterior à independência de Moçambique, o acesso à terra era regulado pelo Regulamento de Ocupação e Concessão de Terrenos nas Províncias Ultramarinas, aprovado pelo Decreto nº 43.894, de 6 de Setembro de 1961, o qual criava várias categorias de utilizadores da terra e definia diversos direitos através dos quais se podia aceder à terra.

Nos termos do referido regulamento, os moçambicanos podiam ocupar parcelas de terra de forma individual ou conjunta. A ocupação individual era feita por via das seguintes formas:

a)     o aforamento, também designado por emprazamento ou enfiteuse, em que pressupõe o desmembramento do direito de propriedade em dois domínios: domínio directo, que continua a pertencer ao proprietário, neste caso, o Estado colonial português, e o domínio útil ao foreiro ou enfiteuta;

b)      o arrendamento;

c)      a compra e venda de terrenos ocupados por prédios urbanos ou adquiridos para a sua construção, nas cidades.

A ocupação conjunta era feita pelas populações das zonas rurais, segundo práticas e normas costumeiras e não conferia o direito de propriedade individual, sendo regulada pelos respectivos costumes.

Após a independência de Moçambique, a primeira Constituição da República Popular de Moçambique aprovada em 1975 veio dispor que toda a terra em Moçambique era propriedade do Estado, a quem competia determinar as condições do seu uso.

Nestes termos, os antigos proprietários de terras, os cidadãos que utilizavam a terra segundo as práticas e normas costumeiras e todos os outros que utilizavam a terra através de outros mecanismos propiciados pelo direito de propriedade privada “ (...) passaram, de um momento para o outro, a meros utilizadores da terra através de um mecanismo legal, que, entretanto, só foi clarificado quatro anos mais tarde (...)[2]” com a entrada em vigor da primeira Lei de Terras, aprovada pela Lei nº 6/79, de 3 de Julho, passando, o referido mecanismo legal, a ser conhecido por direito de uso e aproveitamento da terra.

A primeira Lei de Terras e respectivo regulamento exigiam que os utentes da terra, para fins económicos, requeressem um novo tipo de “licença”, bem como a possibilidade de poderem ser validadas as concessões definitivas por aforamento, arrendamento e outras de propriedade de terrenos, dadas antes da data da independência de Moçambique, desde que, nos termos da legislação vigente, não tivessem sido nacionalizadas, confiscadas, declaradas abandonadas ou por qualquer forma intervencionadas pelo Estado, devendo, para efeitos da validação, ser conferida a correspondência dos dados do título e com a realidade factual.

Esta possibilidade de validação cessou com a aprovação do novo e actual Regulamento da Lei de Terras, aprovado pelo Decreto nº 66/98, de 8 de Dezembro. 

Por outro lado, a nova Lei de Terras, aprovada pela Lei 19/97, de 1 de Outubro, actualmente em vigor, salvaguarda os direitos adquiridos anteriormente, seja pela via da ocupação, segundo normas e praticas costumeiras que não contrariam as normas constitucionais, ou pela aprovação de um pedido.

No entanto, a Lei de Terras e seus regulamentos não definem estas normas e práticas costumeiras, em virtude do reconhecimento da existência do pluralismo jurídico que caracteriza a sociedade moçambicana, o qual tem um duplo sentido: 1º) existência de vários sistemas normativos consuetudinários; e 2º) coexistência desses diversos sistemas costumeiros com o sistema normativo positivo do Estado. Segundo o autor André Calengo, o reconhecimento do uso e aproveitamento da terra por ocupação através de práticas costumeiras está ligado  ao costume em África do carácter sagrado da terra e da sua inalienabilidade.

Paralelamente aos mecanismos do direito consuetudinário de aquisição da terra por ocupação, o acesso à terra pelos cidadãos pode ser feita através da autorização do Estado de um pedido formal dirigido ao órgão da Administração Pública competente.

 

2. DIREITO DE PROPRIEDADE SOBRE A TERRA.

Nos termos da legislação moçambicana, a propriedade sobre a terra constitui um direito exclusivo do Estado, constitucionalmente consagrado, o qual integra, para além de todos os direitos do proprietário, a faculdade de determinar as condições do seu uso e aproveitamento por pessoas singulares ou colectivas. Contudo, os poderes do Estado-proprietário encontram-se, constitucionalmente, limitados, tendo em consideração que este não pode vender ou, por qualquer forma, alienar, hipotecar ou penhorar a terra.  

Quando o legislador refere que a terra pertence ao Estado quer-se significar que a terra pertence a toda a comunidade politicamente organizada, no sentido de Estado-comunidade e não de Estado--poder político, ou seja, Estado-administração, que constitui apenas uma forma de materialização e exteriorização dessa comunidade. Este entendimento resulta do facto da terra ser, constitucionalmente, considerada um bem universal de criação de riqueza e bem-estar social, cujo uso e aproveitamento constitui um direito de todo o povo moçambicano, ou seja, de cada um dos cidadãos que integram a comunidade moçambicana.

Esta afirmação do princípio de terra para todos os moçambicanos materializa-se com a aplicação de medidas, tais como, i) fixação de taxas preferenciais para os cidadãos nacionais; ii) isenção total do pagamento de taxas de utilização da terra concedida às comunicadas locais e as pessoas singulares que as integram, aos cidadãos para fins de exploração familiar, às cooperativas e associações agro-pecuárias nacionais de pequena escala. Estas medidas visam permitir o acesso dos cidadãos à terra, como forma de acesso a riqueza e ao bem-estar social, tendo em consideração que é sobre a terra que assenta a agricultura, que constitui a base de subsistência da maior parte da população moçambicana.

É de notar que a propriedade do Estado sobre a terra consiste num direito com conteúdo exclusivo, na medida em que só o Estado pode ser proprietário, nenhum outro sujeito ou entidade, pública ou privada, pode ser titular do direito de propriedade sobre a terra. As outras pessoas colectivas de população e território, tais como as autarquias locais, não podem ser sujeitos do direito de propriedade sobre a terra, pois é um direito atribuído constitucionalmente a um único sujeito: o Estado-Comunidade.

Apesar do legislador permitir o acesso à terra a determinados sujeitos através de práticas costumeiras e usucapião, sem a intervenção dos poderes públicos, o direito de propriedade do Estado recai sobre toda a terra que constitui o território da República de Moçambique, ocupada ou não, tendo em consideração que o legislador estabelece expressamente que “na República de Moçambique, toda a terra constitui o Fundo Estatal de Terras”[3], com o objectivo de esclarecer que, dentro do território moçambicano, não existe terra desocupada.

O poder de disposição do Estado-proprietário, constitucionalmente limitado, se manifesta na prática através dos actos praticados pela administração pública, cujas funções principais incluem:

  • Administração - responder aos pedidos de autorização de uso e aproveitamento da terra;
  • Redistribuição - redistribuir a terra em função dos objectivos de justiça social e de equidade;
  • Gestão – tomar e impor medidas de protecção, conservação, garantir as condições de utilização;
  • Garantia dos Direitos – assegurar os direitos dos utilizadores da Terra através dos Tribunais e outros órgãos de resolução de conflitos.

Daqui resulta que a natureza da propriedade do Estado sobre a terra é uma propriedade pública, cujo titular é o Estado-Comunidade, sendo ela gerida e administrada pela máquina Administração pública, com recurso aos princípios, normas e disposições do Direito Público.

3.  DIREITO DE USO E APROVEITAMENTO DA TERRA.

O direito dos particulares à terra denomina-se de direito de uso e aproveitamento da terra. Para os particulares, trata-se de um direito constitucionalmente consagrado, com conteúdo económico fundamental, de acesso à riqueza e ao bem estar social, e não apenas de uma licença temporária ou de um contrato de arrendamento.

Poderá haver o entendimento de que o direito de propriedade do Estado é sempre superior ao direito de uso e aproveitamento da terra, na medida em que a propriedade é o direito real maior. Contudo, há que ter em conta que estes dois direitos têm uma natureza diferente, especialmente, resultante dos amplos poderes de uso e fruição e das garantias que o direito de uso e aproveitamento da terra confere aos respectivos titulares, que outros direitos reais menores não conhecem.

Contrapondo os dois direitos, constata-se que, no plano jurídico-formal, ambos os direitos estão no mesmo nível, na medida em que se encontram consagrados na Constituição da República. Mas do ponto de vista prático, há momentos de superioridade cujos termos se invertem num e noutro momento, pois há momentos em que a propriedade do Estado sobre a terra aparece como superior e, outras vezes, é o direito de uso e aproveitamento da terra a ostentar essa superioridade[4].

Com efeito, a relação que se estabelece entre os dois direitos, do ponto de vista jurídico-formal  e numa perspectiva teórica, resulta numa relação em que o direito de propriedade do Estado aparece como superior relativamente ao direito de uso e aproveitamento da terra. Isto acontece, por exemplo, nos momentos em que o Estado acede a determinadas áreas de terras para prosseguir um interesse público.

No entanto, do ponto de vista da função social que os dois direitos desempenham, a posição deles inverte-se, pois, neste caso, o direito de uso e aproveitamento está acima do direito de propriedade do Estado sobre a terra. Pois, nesta relação, entende-se que o Estado detém a propriedade da terra para permitir o acesso e uso, da mesma, pelos particulares. Assim, “...o direito de propriedade do Estado sobre a terra aparece como um mecanismo instrumental do direito de uso e aproveitamento da terra pelos cidadãos...”[5], que é por esta via que estes gozam efectivamente das utilidades do bem terra.

Nestes termos, e tendo em consideração que ambos os direitos – direito de propriedade do Estado e direito de uso e aproveitamento da terra são direitos constitucionalmente consagrados -, o Estado não poderá, usando a sua qualidade de proprietário, vir a colocar em causa o direito de uso e aproveitamento da terra quando este é titulado por um sujeito particular.

Enquanto a administração e gestão das terras é processada com recurso às normas do Direito Público, tendo em consideração a natureza jurídica da propriedade do Estado sobre a terra (sendo esta uma propriedade pública), o direito de uso e aproveitamento da terra é essencialmente governado pelo Direito Privado, pois, neste caso, cuida-se das relações entre os particulares ou entre estes e o Estado despido do seu jus imperii[6].

É, pois, da leitura e interpretação da legislação sobre terras, bem como da sua origem e contexto social, que se pode conhecer e compreender a natureza jurídica do direito de uso e aproveitamento da terra consagrado no Ordenamento Jurídico Moçambicano, especialmente na análise sobre os seus sujeitos e as suas vicissitudes, designadamente a aquisição, transmissão e extinção do referido direito na esfera jurídica dos cidadãos.

  1. Artigo 109 da Constituição da República de Moçambique (CRM)
  2. André Jaime Calengo, Lei de Terras Anotada e Comentada, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2005, pág. 114.
  3. Artigo 4 da Lei de Terras.
  4. André Jaime Calengo, Lei de Terras Anotada e Comentada, op. cit., págs. 92 e seguintes.
  5. André Jaime Calengo, Lei de Terras Anotada e Comentada, op. cit., pág. 72

Autores

Emilia Camacho
Emilia Camacho
Sócia
Head of Commercial
Maputo