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As Transacções Electrónicas no Ordenamento Jurídico Moçambicano

As Transacções Electrónicas no Ordenamento Jurídico Moçambicano

A rápida evolução das tecnologias de informação e de comunicação resultou numa transformação significativa na forma como as operações e interacções são realizadas, através do uso crescente e contínuo da Internet, plataformas digitais e serviços electrónicos. Esta nova realidade exige, naturalmente, a criação de normas adequadas que permitam efectuar as transacções e comunicações com segurança.

À semelhança do que ocorre nos outros ordenamentos jurídicos, tem-se verificado, em Moçambique, um compromisso progressivo do legislador no sentido de desenvolver e implementar normas que regulem as referidas transacções electrónicas para que o país possa acompanhar a rápida evolução tecnológica e a crescente utilização das plataformas digitais que têm sido globalmente adoptadas, bem como permitir a eficiência, transparência e acessibilidade dos serviços públicos, através da implementação do governo electrónico, impulsionando, assim, o desenvolvimento socioeconómico no país.

De alguma forma, a Constituição da República de Moçambique e o Código Civil moçambicano já estabelecem, há muito, algumas regras relativas à privacidade, à protecção de dados e à reserva sobre a intimidade da vida privada.

Em 2017, foi estabelecido o regime jurídico das transacções electrónicas, através da Lei n.º 3/2017, de 9 de Janeiro (“Lei das Transacções Electrónicas”), com o objectivo de regular as transacções electrónicas, o comércio electrónico e o governo electrónico[1], para garantir a segurança dos provedores e utilizadores das tecnologias de informação.

Embora da Lei das Transacções Electrónicas constem diversas normas sobre a matéria em questão, sobre as quais se debruçará mais adiante, muitas das referidas normas remetem para uma regulamentação que terá de ser efectuada para a sua plena implementação. Contudo, esta regulamentação tem sido feita a um ritmo progressivo. Inicialmente, a publicação desta regulamentação foi feita de uma forma mais lenta, ao contrário do que sucede actualmente, em virtude da necessidade de acompanhar as operações digitais que têm sido feitas em Moçambique.

A Lei das Transacções Electrónicas veio estabelecer os princípios, as normais gerais e o regime jurídico das transacções electrónicas, de uma forma geral, e, em particular, do comércio e do governo electrónicos, a serem obedecidos em Moçambique, e aplica-se a todas as pessoas singulares e colectivas, públicas ou privadas, que utilizem tecnologias de informação e comunicação nas suas actividades, nomeadamente nas transacções electrónicas ou comerciais e o governo electrónico.

Os objectivos da Lei das Transacções Electrónicas devem, de acordo com a referida Lei, ser prosseguidos pelas entidades que, nos termos da legislação aplicável, têm responsabilidade sobre cada um dos domínios identificados e são, resumidamente, os seguintes:

a)      regular e disciplinar as actividades no âmbito das transacções electrónicas;

b)      estabelecer um ordenamento jurídico que permita que o comércio electrónico, os serviços de governo electrónico as mensagens de dados e as comunicações electrónicas se processem com celeridade e segurança;

c)      criar um regime sancionatório para infracções cibernéticas, assegurando, assim, a protecção dos consumidores;

d)      promover o investimento público e privado no sector das tecnologias de informação e comunicação e da internet, bem como promover e tornar disponíveis redes e serviços de tecnologias de informação; e

e)      garantir a autenticidade, integridade e confiabilidade das mensagens de dados e comunicações electrónicas, através do reconhecimento legal das mensagens de dados.

A Lei das Transacções Electrónicas estabelece, ainda, as normas aplicáveis ao acesso, à recolha, processamento ou divulgação electrónica de dados pessoais[2] e as regras aplicáveis ao processador de dados[3], bem como os direitos do titular dos dados.

Relativamente ao processador de dados e aos direitos do titular dos dados, a Lei estabelece normas de protecção de dados pessoais contra riscos, perdas, acesso não autorizado, destruição, utilização, modificação ou divulgação, proibindo o acesso a arquivos, ficheiros e registos informáticos ou de bancos de dados para conhecimento de dados pessoais de terceiros, bem como a transferência de dados de um para outro ficheiro informático pertencente a serviços ou instituições distintos, salvo algumas excepções estabelecidas na Lei.

A Lei das Transacções Electrónicas veio, ainda, incentivar o desenvolvimento de serviços de governo electrónico, tais como a provisão de serviços de forma electrónica na administração pública, aceitação de arquivo e emissão electrónica de documentos e o sistema de certificação digital, que constitui um passo importante para a modernização da administração pública e melhoria dos serviços públicos, contribuindo para uma melhor eficiência na análise, transparência e celeridade dos processos.

A Lei das Transacções Electrónicas constituiu o primeiro passo para o desenvolvimento de um quadro jurídico moçambicano mais abrangente e robusto, que se pode constatar com a entrada em vigor de diversa legislação subsequente sobre algumas matérias relacionadas e baseadas na referida Lei, sendo de destacar os seguintes diplomas legais:

a)      O Regulamento do uso do domínio “mz”, aprovado pelo Decreto n.º 82/2020 de 10 de Setembro, que veio fixar os termos condições aplicáveis à gestão, reserva e registo de nomes sob o domínio da Internet “mz”[4], estabelecer as regras para o registo de domínios e subdomínios, a aplicação de taxas de licenciamento e uso anual do domínio, as regras e o licenciamento dos agentes de registo, bem como definir penalidades para o uso fraudulento ou abusivo do domínio;

b)      O Regime jurídico dos contratos comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 3/2022 de 25 de Maio, que versa sobre o contrato electrónico e contrato inteligente, embora careçam, ainda, de legislação específica que os regule;

c)      O novo Código Comercial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 1/2022 de 25 de Maio, que faz referência ao uso de meios electrónicos para o registo e inscrição de actos societários, bem como faz menção a um sítio de Internet, com endereço electrónico da entidade competente para o registo, de acesso público, para a publicação de comunicações que a lei mande publicar, que sejam dirigidas aos accionistas, sócios ou credores;

d)      O Regulamento de registo e licenciamento de provedores intermediários de serviços electrónicos e de operadores de plataformas digitais, aprovado pelo Decreto n.º 59/2023 de 27 de Outubro, que constitui um grande contributo para o desenvolvimento do sector das tecnologias de informação e comunicação, ao vir definir e regular de forma concreta os requisitos para o registo e o licenciamento dos operadores de plataformas digitais e provedores intermediários de serviços electrónicos[5].

Em particular, este Regulamento estabelece que os provedores intermediários de serviços electrónicos e os operadores de plataformas digitais que ofereçam serviços em Moçambique, mesmo que não possuam um estabelecimento no território nacional, devem licenciar-se para o efeito, de acordo com as disposições constantes do Regulamento.

O Regulamento estabelece como categorias de provedores intermediários de serviços electrónicos, as seguintes: (i) provedor intermediário de serviço de mera conduta, (ii) provedor intermediário de serviço de caching, (iii) provedor intermediário de serviço de hospedagem, e outros provedores a serem definidos por deliberação da Autoridade Reguladora de Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC).

Por sua vez, constituem categorias de plataformas digitais: (i) plataforma de mercado digital, (ii) plataforma de pesquisa digital, (iii) plataforma de repositório digital, (iv) plataforma de comunicação digital, (v) plataforma de comunidade digital, (vi) plataforma de pagamento digital, entre outras a serem aprovadas por deliberação da Autoridade Reguladora de TIC.

A entrada em vigor deste Regulamento revela-se fundamental para modernizar e fomentar o desenvolvimento de novos negócios por sociedades, investidores e empreendedores que se pretendam estabelecer em Moçambique e desenvolver plataformas digitais e serviços electrónicos, bem como para a segurança dos usuários das referidas plataformas e serviços, face à sua crescente utilização a nível global.

e)      O Regulamento do Registo das Entidades Legais, aprovado pelo Decreto-Lei 1/2024, de 8 de Março, formaliza a possibilidade de submissão de processos junto da Conservatória do Registo das Entidades Legais de forma remota, através de um portal de submissão de processos da Conservatória do Registo das Entidades Legais, bem como a emissão de Certidões de Registo Comercial que são passadas, agora, “em impressos de modelo aprovado e devidamente seladas ou em formato eletrónico de modelo aprovado com código de barras que dá acesso ao portal da Conservatória do Registo de Entidades Legais para consulta da autenticidade”.

A aprovação dos diplomas legais acima referidos é importante não só para promover a confiança e a protecção dos utilizadores e das empresas no ambiente digital, mas também para facilitar a integração de Moçambique na economia mundial, ao mesmo tempo que promove a inovação tecnológica no país e a inclusão de Moçambique no “mundo digital”.

Dever-se-á continuar a aprofundar a regulamentação de modo a que se permita a plena aplicação da Lei das Transacções Electrónicas, por forma a proteger as pessoas, singulares e colectivas, públicas ou privadas, que utilizem as tecnologias de informação e de comunicação, contra fraudes e outras formas de exposição, permitindo que as pessoas e empresas, em geral, participem na economia digital de forma dinâmica, segura e confiável.

À medida que a tecnologia evolui rapidamente, é crucial que o ordenamento jurídico moçambicano continue a acompanhar essas mudanças, de modo a que o país se posicione e possa tirar maior proveito das oportunidades que a economia digital oferece globalmente.

[1] Nos termos da Lei das Transacções Electrónicas, governo electrónico é definido como “uso de tecnologias de informação e comunicação, principalmente a Internet, pelo governo para providenciar informação e serviços ao cidadão.

[2] Os dados pessoais são definidos como “qualquer informação relativa a uma pessoa singular que possa ser identificada directa ou indirectamente através da referência a um número de identificação ou a um ou mais factores específicos à mesma”.

[3] Entende-se por processador de dados “qualquer pessoa pública ou privada, singular ou colectiva, que requeira, recolha, processe ou armazene electronicamente informação pessoal de ou a respeito de um sujeito de dados”.

[4] Nos termos deste Regulamento, considera-se domínio. “mz” “o espaço de Internet cuja gestão é da responsabilidade de Moçambique”.

[5] Nos termos deste Regulamento, define-se por operadores de plataformas digitais o “provedor de aplicações da Internet que explora profissionalmente e com fins económicos as plataformas digitais” e por provedores intermediários de serviços electrónicos “a entidade que, em representação de outra pessoa, envia, recebe ou armazena mensagens de dados, presta serviços de acesso a rede ou serviços a partir dela”.

Autores

Ana Martins
Ana Martins
Associada
Advogada Sénior
Maputo